Julgar uma cultura pelo seu presente talvez seja o maior erro de um formador de opinião. Pior ainda é culpar essa cultura por retrocessos sociais. Entenda porque devemos afirmar que os grandes salvadores dessa interminável polêmica são aqueles joguinhos esquecidos do passado: os retrogames.
Observam-se muitas manifestações contemporâneas. Novas crenças, novos mitos e novos conceitos surgem a cada dia, graças às novas TICs e redes de conteúdo colaborativo, e que também rapidamente desaparecem. Ninguém se lembra do hit do carnaval de 2011, nem da celebridade que morreu no ano retrasado. É desafiador lembrar dos últimos três filmes ganhadores do Oscar, ou sequer dos filmes bacanas que se viu no ano passado. Certas coisas somem da nossa mente. E mesmo sem saber por quê, simplesmente não estamos nem aí para lembrá-las. Não nos interessa. Nos tocaram de alguma forma, mas não formaram nossa opinião ou sequer construíram em nós um significado.
Na contemporaneidade de experiências, nos tornamos cada vez mais consumidores das sensações. Prato cheio para a mídia e para os governos controladores. Estes que enchem a boca para falar de Cultura. Pois bem, é preciso interpretar e entender o significado das palavras. Nada mais adequado do que consultar o “pai dos burros” – isto é, o famoso dicionário para começarmos a entender por que jogo é cultura e por que tudo isso veio do retrogaming.
Segundo o dicionário, jogo é definido como uma atividade inerente à existência do homem, como parte de sua configuração e interação social. O jogo é um desafio regido por regras, cuja principal função é o divertimento. Os críticos trocam o termo jogo pela palavra game (que por sinal significa a mesma coisa, só que em outra língua). Mesmo esses ditos conhecedores da matéria afirmarem que o game é um nocivo produto interativo que vem do videogame ou do computador, observa-se que um jogo digital nada mais é do que uma versão eletrônica dos outros tipos de jogos que existem: tabuleiro, cartas, atléticos e infantis. Dessa forma, o jogo condenado por eles é o mesmo jogo que estes brincaram décadas atrás, só que sem elementos interativos. Cai no poço, polícia e ladrão, estilingue, pega-pega, W.A.R, todos de certa forma trabalham com os mesmos polêmicos temas. Tudo na sua dose.
Não se defende essa crítica citando pesquisas de que os games estimulam isso ou aquilo. Que gamers terão seus cérebros ultra estimulados e controlaram o planeta daqui a alguns anos. Que os games oferecem benefícios para o raciocínio e por aí vai. Livros eram assim em uma época. Revista em quadrinhos, também. A questão é: jogo é uma atividade recreativa, seja em qual plataforma for e em qualquer contexto.
Isto posto, vamos à cultura, sem rodeios. Cultura nada mais é do que um conjunto de padrões imagéticos, sensoriais, semióticos, tangínveis ou intangíveis que um determinado grupo em um espaço geográfico adquire ao longo dos anos, muitos anos. Esses padrões, quando estudados, revelam a identidade de um povo, que se comunica e gera seus valores a partir das suas manifestações e rituais culturais. Não é preciso, pois, haver uma religião para ter cultura. Não é preciso toda uma população conhecer um termo, palavra ou hashtag para que aconteça cultura. Basta o tempo e a lembrança. Então pode-se afirmar: você se lembra dos jogos eletrônicos antigos, aqueles que um dia te fizeram uma criança feliz. Logo, isso é cultura.
Você que é um Baby Boomer e ainda repudia os jogos eletrônicos como uma forma de manifestação de um povo, um dia comprou pro seu filho um Telejogo e um Atari 2600 nos anos 70 e 80. Conheceu e jogou um videogame chamado Odyssey da Philips, brincou com o Genius da Estrela e desejou saber usar um computador.
Você, da geração X, que hoje tem o poder de decidir o futuro da cultura neste país, jamais deveria renegar o seu passado de Super Mario Bros., Alex Kidd e as brincadeiras que fazíamos todos juntos na casa do nosso coleguinha de sala, com merenda à base de sanduíche de pão de forma com presunto, queijo e manteiga, devidamente cortado pela diagonal, servido com suco de laranja Tang.
Você da geração Y, que viveu a ebulição das tecnologias e foge dos “mimimis” por ter jogado muito “joguinho mal feito” do Super Nintendo, Mega Drive, Playstation e Game boy, tenha coragem! Assuma que essa foi a melhor época da sua vida.
Seria exagero dizer que um povo reconhece as frases a seguir? “Oi querida. Trabalhei muito hoje. Meu life está quase acabando.” – “O cara deu um hadouken em você hoje na reunião.” – “O aluno mandou um combo breaker naquele professor metido.” – “É, meu amigo, game over no relacionamento.” – “Minha fase na vida está tão complicada que nem o Sonic consegue passar dela.”.
Existe, então, uma apropriação de termos, signos, formantes e construtos dentro da nossa sociedade, oriunda dos videogames antigos. Antes, as HQs dos anos 70 eram as responsáveis pela construção do imagético heróico e renegado dos jovens, estimulando possibilidades na resolução de problemas do dia-a-dia. E caras maus as culparam por denegrir a juventude. Foi assim com a TV nos anos 80, o cinema nos anos 90… Como não existem mais vilões para culpar o único fato persistente por todas essas décadas – a omissão da educação familiar – a vítima foi a World Wide Web nos anos 2000. Nos anos 10, chegou a vez do game, já que todos banalizam as verborragias e absurdos que a Internet proporciona.
Muita gente fala que tudo hoje parece um videogame. A linguagem da novela, do cinema, do programa de TV e da revista. Fazendo a análise dessa linguagem, extraímos os conceitos primários dos jogos clássicos: objetivo, desafio e foco. Características que motivam pessoas a irem em frente. Veja as caixas e anúncios dos jogos antigos. Neles famílias brincam juntas. É neste momento que a saudade bate no coração. Você lembra do seu irmão que dividiu bons momentos com você curtindo um game. O retrogame aproximou a família. Ligue pra ele agora! Faz tempo que você não o vê, pois hoje estamos cada vez mais distantes.
Ativistas se justificam considerando que o fato de você ter jogado jogo A, B ou C não te faz um craque de bola, um super piloto ou um assassino. É óbvio que não. Você teve uma infância feliz e próxima da família e dos amigos, vivendo os desafios de ser uma criança que aprendeu a perder e a ganhar, envolto em uma estrutura mínima de moral. Foi simplesmente você que decidiu e optou por seu caminho. É nesta simplicidade que se deve reconhecer o retrogame como o artefato cultural que moldou os grandes diretores e diretoras de empresas de hoje, chefes de família, empresários e empresárias que fazem o país ir pra frente.
A maior prova de que uma cultura está associada ao seu povo é quando ela atinge não somente o estético, como as estampas das camisas das lojas de departamentos, mas socialmente o indivíduo. Ao invés de rechaçar levianamente esse acervo belíssimo, de ignorar as ações no sentido de aproximar as pessoas, os notoriamente desinformados críticos deveriam reconhecer o valor dos games. Graças à eles, sabemos que a vida tem um objetivo: ser feliz ou encontrar a paz enquanto bicho-homem; que temos desafios: superar dignamente os obstáculos que se apresentam; que existe um foco: ser ético, responsável e humilde.
Obrigado, retrogames.
Atualiazado em 25/07/2016 por Daniel Gularte