Sumário
No anos de 1970 os computadores ainda eram um mistério para a maioria dos brasileiros, principalmente para crianças que tiveram o primeiro contato com as diversões eletrônicas pelos arcades e clones de Pong. Este fenômeno fez surgir os primeiros interessados em não somente jogar, mas também por descobrir o fantástico mundo da criação dos jogos em todo o Brasil. Este texto, que sofrerá constantes atualizações, versa sobre os fatos específicos que fizeram surgir os pioneiros no desenvolvimento de jogos no Estado do Ceará, e que mesmo despretensiosamente, conseguiram alcance nacional e inspiraram milhares de novos desenvolvedores em todo o país.
Amigos e um hobbie em comum
A primeira geração dos desenvolvedores de jogos do estado do Ceará nos leva aos jovens de 12 para 13 anos, a autêntica geração X, filhos dos baby boomers que reconstruíram o mundo moderno no pós-guerra. A capital do Estado, Fortaleza, experimentava os primeiros desenhos urbanos da sua expansão radial. Não haviam preocupações com segurança e os deslocamentos para os bairros ainda eram desafios. O turismo se tornou mais evidente, com a Praia de Iracema sendo ponto de encontro dos artistas e intelectuais, e a Beira Mar como a representante da modernidade que chegava à capital, seguida pela praia do Meireles.
Os bairros residenciais da capital se configuravam pelos seus limites naturais e urbanos, como as avenidas Santos Dummont e Antônio Sales, desenhando os bairros nobres como Aldeota e Joaquim Távora. Nesses bairros, nasceram jovens como Keyton Cabral, que viu na década de 80 o surgimento dos videogames no Brasil. Mas não foi apenas isso – seu pai em 1982 comprou para o jovem um computador CP200 da Prológica, com 2KB de memória, concorrente principal do computador da Microdigital, o TK-85 (ambos baseados no ZX81 da Sinclair).
Os pais dedicados da geração X sempre buscaram dar para seus filhos o que pudessem. Essa seria uma característica fundamental que até hoje acompanha o modelo capitalista consolidado nessa época. A visão desenvolvimentista com a corrida espacial levou jovens a sonhar com as guerras espaciais, a exploração de outros planetas. E isso envolvia o computador. Márcio Ramos, fez amizade com Keyton, que morava na rua João Brígido, próximo da locadora de videogame Loc Video, localizada a época na rua Tibúrcio Cavalcante. Márcio morava na rua José Vilar e tinha em casa um CP-300, além de, claro, um Atari. As ruas onde eles moravam ficavam próximas ao corredor da Avenida Antônio Sales.
Eles Passavam boa parte do tempo livre jogando e lendo as revista Micro Sistemas (onde Renato Degiovani, com 26 anos, já publicava seus jogos), Micro e Vídeo e Input. Essas publicações ajudaram os jovens a compreender a linguagem de programação Basic e as rotinas em Assembler, o que permitia que pudessem criar seus próprios programas, ainda naquela idade.
A loja Micro Center, situada na avenida Santos Dummont, cuja proprietária, dona Carla Piazzi irmã do conhecido professor Pierluigi Piazzi (pioneiro do MSX no Brasil), ofereceu os primeiros cursos de Basic da cidade. Essa loja inclusive, em 1985, foi uma das primeiras capitais do Brasil a receber o MSX. Após ter feito um curso da Micro Center nessa época, Keyton ainda digitava os complexos códigos das revistas para ver jogos funcionando em seu computador, como simples simuladores de voo no CP200.
Keyton e Márcio adquiriram um CP400 por causa da capacidade de rodar jogos, pois já se tinham mais cores e sons. Foi quando ele e seu amigo foram apresentados ao gênero adventure game, com jogos como Calixto Island, The Black Sanctum, The Vortex Factor (da Mark Data Productions), já com gráficos para o sistema. Não demorou muito para a dupla conseguir encomendar seu próprio MSX na Micro Center. Foi uma época onde os jovens aprendiam inglês jogando e programando.
O MSX Expert representou um salto da qualidade muito grande dentro do universo dos jovens programadores no Brasil. Mesmo no mundo todo ter enxergado a plataforma MSX como uma suíte para jogos, a dupla desenvolveu um protótipo de um jogo de boxe para testar o Basic e outro jogo plataforma. Em pouco tempo eles começaram a estudar a lógica por trás dos jogos adventure. Surge então o jogo House of Adventure, apenas para demonstrar o sistema de setas de orientação: uma casa cheia de armadilhas onde o objetivo era sair dela com vida.
A criação da PISC e os primeiros jogos cearenses
O primeiro jogo oficialmente desenvolvido e distribuído no Ceará é de 1986 e se chama Castelo Negro. Feito para divulgação gratuita da dupla, que criou um criativo nome para seu estúdio, PISC – Programas Inteligentes para o Seu Computador. No jogo você precisa encontrar um portal para sair do castelo negro e pegar os tesouros. A mecânica desse jogo funciona com a escolha de uma ação e um substantivo (objeto por exemplo). Se você conseguir achar a frase correta, poderá ter um desfecho positivo ou negativo. Em cada tela do jogo, é feita uma pergunta e o jogador poderá se movimentar nas orientações possíveis ou realizar alguma ação. A PISC também era muito criativa e gostava de inovar nesses jogos, como por exemplo, em uma tela que o jogador fica de frente com o touro, a mecânica do jogo muda e vira um minigame de arcade.
Localmente a PISC foi criara como mais uma “firma” que fazia programas para o mercado local. Mas eram seus jogos que faziam sucesso a partir de Keyton (com apenas 16 anos), Márcio (com 15 anos), e o irmão de Márcio, Sílvio Ramos, de apenas 13 anos, que entrou para dar mais fôlego ao time. Em 1987 a Pisc lança Heli War, mais um jogo experimental, e um ano depois, em 1988, é lançado outro adventure nos modelos de Castelo Negro: A Maldição da Vila Sinistra. Os jogos eram distribuídos e começavam suas vendas graças a uma loja no maior shopping da Cidade, o Iguatemi. O proprietário da Lógica informática, o senhor Sarto, pedia para seu gerente, Genival, negociar com os jovens desenvolvedores como colocar os jogos na vitrine. Os games eram copiados e confeccionados de forma artesanal, em fita cassete.
Mais dois irmãos e um amigo se juntaram ao grupo, quando realmente se pensou, no fim dos anos 80, em tornar a PISC uma empresa. Os irmãos Marcelo e Cláudio Campos ajudariam na programação e no design. Mas a nova dupla não gostava do nome PISC – achava pouco comercial. O grupo entrou em um acordo e a empresa se chamaria GENES informática – abreviação para Geração Nordeste de Software, com os integrantes:
- Keyton Cabral – programação
- Marcelo Campos – programação
- Márcio Ramos – programador
- Deodoro Filho – designer gráfico
- Cláudio Campos – designer gráfico
- Gustavo Santos – designer gráfico
- Sívio Ramos – colaborador e designer gráfico
Com a equipe formada, em 1990, surge o maior projeto de um jogo autoral no Ceará: o Taça Mágica.
O maior game do Ceará
O jogo Taça Mágica não aconteceria se não fosse por outra empresa pioneira e 100% cearense: a Microsol. Ela foi a primeira empresa a disponibilizar o drive de disco 51/4 para o MSX, o que possibilitou que o jogo Taça Mágica fosse desenvolvido já no formato de disquete, com exuberantes gráficos para a época e uma jogabilidade refinada para os jogos de adventure. No game, o personagem Ed Ventura deveria enfrentar os desafios para encontrar a taça mágica, bem aos moldes do aventureiro Indiana Jones.
Keyton viajou para o Rio de Janeiro para divulgar o Taça Mágica na loja Phantom Informática, que anunciava na Micro Sistemas jogos inéditos feitos no Brasil, os mesmos onde Renato Degiovani também divulgava seu trabalho. O Sr. Liberato, proprietário da loja recebeu o jovem empreendedor, mas não deu muita confiança para o rapaz. Segundo Keyton, em entrevista exclusiva para o Bojogá, após muito tempo de espera ele pôde ser atendido. Quando Liberato inseriu o jogo em seu computador duvidou que uma equipe do Ceará seria capaz de fazer tamanha proeza em um game. De imediato negociou 100 unidades do jogo com distribuição exclusiva pela Phantom. Taça Mágica foi o primeiro jogo cearense publicado nacionalmente e com enorme sucesso, sendo logo distribuído também para outras lojas. Os pedidos pelo game não paravam de chegar e eram enviados por correio. O jogo custava Cr$650,00 e a Genes ficava com Cr$250,00 por jogo.
O primeiro estúdio de jogos do Ceará não ficou por aí. E qual seria o próximo jogo? Deveria ser uma narrativa épica, com novos recursos e gráficos ainda melhores. O roteiro de Lorde das Trevas começou a ser pensado por Keyton, onde Ed Ventura, o mesmo personagem de Taça Mágica, deveria enfrentar o Lorde das Trevas em seu castelo.
Com o roteiro pronto o jogo ficou 90% concluído, com uma nova engine, onde agora para se prosseguir nas salas o jogador teria combinações de verbo + substantivo + vocábulos extras e sinônimos, o que deixava a aventura ainda mais desafiadora. O próprio Keyton desenvolveu um editor gráfico próprio da empresa para auxiliar os desenhos no MSX pelos designers, removendo problemas encontrados na codificação.
A ainda pouca memória do MSX foi o principal desafio do time: criar animações. Para dar o efeito, a solução foi renderizar via disquete imagem por imagem, uns poucos quadros que daria um efeito animado ao jogador. Isso dificultou e muito o pipeline de desenvolvimento, exigindo muito de todos muita dedicação. Foi preciso dividir o jogo em duas partes, o que deu mais problemas para resolver, principalmente os itens que o personagem guardava para o próximo disco, já que não haviam memória residual.
A juventude vai embora e com ela alguns sonhos
Aos 20 anos de idade as prioridades dos jovens vão mudando e o mundo adulto vai se desvelando para todos nós. E com a equipe da Genes/PISC, não foi diferente. Aos poucos, os integrantes foram namorando e passando na faculdade. O interesse em terminar Lorde das Trevas foi diminuindo, principalmente por causa do problema de memória: levar os objetos coletados do disco 1 para o disco 2 era impossível, e não fazia o menor sentido abandonar os objetos para o próximo disco, deixando o jogo sem sentido algum. O jogo ainda teve um demo, distribuído gratuitamente para os últimos compradores do Taça Mágica que enviavam um selo promocional. O programa final de Lorde das Trevas ficou com os programadores, que se desfizeram dos seus aparelhos e não possuem mais nenhuma cópia desse jogo.
Muitos fatores fizeram com que o estúdio cearense desistisse do ramo de jogos – um deles foi geográfico. Renato Degiovanni, que fez jogos nacionalmente conhecidos como Amazônia e A Lenda da Gávea, tinha mais notoriedade por estar próximo ao eixo Rio/São Paulo. E mesmo que Lorde das Trevas tivesse uma qualidade a nível mundial, o esforço logístico para lançar a distribuir o game afastou o interesse do grupo como um todo.
No início dos anos 90 o MSX começa a declinar e entra a família de produtos Amiga no Brasil, onde ocorreu o primeiro contato com 3D por parte de programadores no Brasil, com ferramentas como o Sculpt 3D e a Imagine. Esse movimento tem apoio forte também por conta do fim da reserva de mercado, que abre bastante o horizonte para a troca de tecnologias no mundo recém globalizado. Assim, a programação para o MSX foi dando lugar para os estudos em computação gráfica.
Com a vida profissional dos integrantes, os jogos foram esquecidos e a empresa foi abandonada. Tanto Márcio Ramos como Keyton Cabral enveredaram para a computação gráfica. Keyton abandonou engenharia elétrica (trabalhando com diversos trabalhos em campanhas políticas). Keyton gosta da plataforma Xbox, PC e jogos VR, mas com quase 35 anos de história, Keyton lembra do Basic em emuladores e ainda se arrisca a escrever alguma coisa. Perguntado se ele é o porta-voz do grupo, ele nega. Keyton ressalta que o time foi essencial para levar o projeto à frente e que os amigos e a confiança levam longe qualquer projeto. Hoje os integrantes do primeiro estúdio cearense de jogos trabalham em outras áreas, com especialidades distintas:
Epílogo – desbravadores digitais
Após a virada dos anos 90 e a retomada do relacionamento tecnológico entre o mercado internacional e as empresas brasileiras, vive-se um momento de latência no desenvolvimento de jogos no Brasil. A produção de jogos Brasileiros se concentrou na localização de jogos nos videogames, por cinco anos. Porém, em 1995, com a chegada da Internet no Brasil, muita coisa mudaria, e com isso, uma nova geração de desenvolvedores de jogos surgiria no Estado do Ceará.
Atualiazado em 27/01/2021 por Daniel Gularte
Muito bom!!!! valeu!!!!
Que delicia ler este texto e descobrir que neste lugar onde as praias lindas certamente fariam eu me afastar do computador havia estes garotos empreendedores.
Nem imagino o que seria se aos 13 anos tivesse acesso a um computador, o que sei é que já fazia jogos, com tabuleiros e até mesmo montei minha própria mesa de Pinball e quando descobri os computadores (já com mais de 20 anos) fiz exatamente o mesmo que estes desbravadores ao mesmo tempo em que tentava me acertar com as questões adultas, lidava aom a primeira filha e tudo mais… que “atrapalha” bastante poder se dedicar a criação de games…. que é algo que apenas alguns eleitos entendem, já que a maioria das pessoas se contenta em apenas jogar.
Adorei ler isso….
Maravilha ter um registro da nossa história! Parabéns, Daniel Gularte!
Ansioso pela parte 2, muito legal conhecer a história de desenvolvimento de jogos no Brasil!