No texto anterior, exploramos como a relação entre jogo, memória e imaginário influencia a cultura de forma coletiva. Agora, voltamos nosso olhar para uma dimensão mais íntima e subjetiva: a poética do jogo digital e sua relação com a memória pessoal. Se a cultura molda a forma como percebemos o mundo, a experiência individual permite ressignificar esses elementos, tornando cada vivência única.
A memória cultural contém inúmeros elementos capazes de provocar encanto, mas por si só não gera poéticas. A poética emerge quando há um sujeito ativo que atribui significado a essas experiências. A cultura, ao oferecer um arcabouço simbólico para interpretar o mundo, também proporciona a possibilidade de ressignificação individual. É nesse ponto que os jogos digitais se tornam veículos potentes para a construção de narrativas poéticas pessoais.
A experiência do jogador em um jogo digital está profundamente conectada ao conceito de círculo mágico de Huizinga (2008), no qual o jogo cria um espaço simbólico separado da vida cotidiana, mas que influencia e é influenciado por ela. No entanto, enquanto Huizinga foca na estrutura coletiva do jogo, Paul Ricœur (1984) nos ajuda a compreender como a experiência narrativa do jogo é apropriada individualmente. Em Tempo e Narrativa, Ricœur argumenta que o tempo se torna compreensível por meio da narrativa, e os jogos, ao oferecerem experiências interativas, permitem ao jogador reconfigurar sua própria vivência temporal dentro do espaço virtual.
Os jogos digitais, por sua natureza interativa e imersiva, oferecem uma plataforma única para que os jogadores poetizem suas próprias experiências. Como afirma Murray (2011), os jogos são uma forma de arte participativa que permite ao jogador experimentar e moldar mundos alternativos. Essa interação cria um espaço no qual o jogador pode sonhar, interpretar e ressignificar os elementos do jogo, transformando-os em parte de sua própria memória poética. Já Bachelard (2008), em A Poética do Espaço, sugere que a experiência do espaço pode ser vivida de forma imaginativa, sem necessidade de uma causalidade lógica. Nos jogos digitais, esse aspecto se intensifica, pois os jogadores podem projetar suas emoções e subjetividades em ambientes virtuais, recriando e criando memórias e afetos dentro do espaço digital.
Enquanto a memória coletiva está ligada à cultura compartilhada e à transmissão de símbolos comuns, a memória pessoal é um exercício subjetivo de significado. No contexto dos jogos digitais, essa subjetividade se manifesta de maneira interativa. Diferente da literatura ou do cinema, onde o leitor ou espectador normalmente segue uma narrativa já estruturada, o jogo permite que o jogador atue sobre a narrativa, modificando-a de acordo com suas escolhas e experiências. Isso amplia o potencial poético do jogo, tornando-o um espaço onde a interpretação e a criação caminham juntas.
Aristóteles, ao tratar da poética, estruturou os elementos formais da narrativa, mas não se aprofundou no impacto emocional e subjetivo da experiência no público. No entanto, em um jogo digital, a poética se desdobra em múltiplas possibilidades, pois cada jogador vivencia a narrativa de forma única. Essa autonomia na experiência lúdica faz com que os jogos digitais sejam um meio expressivo singular, onde a experiência subjetiva ganha novos contornos.
Em síntese, os jogos digitais não apenas reproduzem histórias, mas também proporcionam um espaço ativo para a criação e ressignificação da memória pessoal. A poética dos jogos emerge na interseção entre a interação do jogador, o ambiente digital e o significado que ele atribui à sua própria experiência. Assim, os jogos não são apenas formas de entretenimento, mas instrumentos poderosos para a construção de sentido e transformação da experiência humana.
Atualiazado em 02/03/2025 por renan753